sexta-feira, 18 de março de 2011

A Fome.









Como ousa sangrar-me a dor imbuída, lacuna ferida em meu peito de aurora?
            - Chega! Não me vale mais, agora, tentar ser aquilo que o arco-íris não me deixa ser. Tentar ser luz, ser cor, apenas desnuda minha sombria treva incandescente. De que adianta, eu, ser da lama dos pântanos mais fétidos, tentar ser unicórnio de asas douradas? Nada! Todos sabem de mim, o que sou e o que busco ser em minhas palavras. Se a vida é paradoxo, cansei de ser mais um exemplo nítido falando de Amor...
            - Que minhas chagas dolorosas sejam tocadas pelas luzes de teus olhos. Cura perfeita, eu tenho em ti, minha honesta aurora de ontem, hoje, amanhã e sempre... Afasta de mim os males que me abalam a fé. A luz fosca, agora dá lugar as sete cores que alegram meu destino...
            - Alegria! Quão dessemelhante de meu cotidiano tu te encontras. Que cura há de ter as minhas chagas podres? Os vermes nelas já fazem moradia e eu sangro sozinho. A cada dia já sinto que uma parte de mim já se está no buraco. Primeiro foram minhas pernas; tirando-me a possibilidade de fuga. Depois minhas mãos; arrancando-as e junto com elas levando minhas chances de defesa. Agora, que posso eu fazer, a não ser derramar sangue dos meus olhos?
            - A sabedoria me inflama a alma. Este canto doce te cala, lado obscuro da vida. Estamos cada vez mais próximos da primavera. E tua curta existência está se findando. Tu duras não mais que um sorriso aberto, que o sentimento de amor paterno. É com a chegada de setembro e, com as flores de perfume sensível que louvamos o teu fim.
            - Chega de mentiras! Tu és o meu lado falso. Cansei de ti, efemeridade diabólica. Eu contarei tudo. Calas-te e só abre a boca quando solicitado, verme infame. Se o meu hálito hoje fede a lama, meu corpo desata nojo foi por tua causa, semente maligna do jardim traiçoeiro.

***

            Chovia muito em minha terra natal, naquele dia. Aquela chuva inundava de lama todas as casas da redondeza. Eu sentia o cheiro das fezes dos porcos, que eu criava. E foi por causa deles que aconteceu tudo... Não havia colheita digna fazia cinco anos. Sucedendo os anos de pouca chuva com os de inundação.
            Em nossa cidade, o caos não se instalava por não faltar almas caridosas que nos estendessem as mãos com algumas migalhas. Mas a cada dia estas migalhas iam se escasseando. Este ano, quem as conseguisse teria a garantia de mais alguns dias de vida.
            Minha cabana não protegia muito da chuva. Eu me encolhia em um lugar onde menos molhasse. O vento soprava na janela, batendo-as. O capim não se ondulava tanto: a lama e a água encharcavam-o. E os porcos faziam um barulho penoso e desafiante. Ainda resta um pedaço de pão duro. Corro em sua direção, a faca o perpassou e frito um pedaço de Jane para rechear o pão.
            - Como eu te amava, Jane. Se a tuberculose não te tivesse arrancado dos meus braços, em pouco tempo, estaríamos correndo no relvado e colhendo as flores que tanto te agradavas.
            Mas carregou-a. e hoje eu tenho que aproveitar sua carne. Amanhã matarei os outros dois porcos que sobraram. Já está em tempo. Hoje, enquanto chove, a carne de Jane me nutre e me dá o privilégio de viver mais algum tempo. O pão estava com marcas de mofo, com pedaços ruídos por ratos, mas me saciou a fome que me saciaria.
            O dia vai nascendo e o sol que devia alegrar, acaba aquecendo por demais e queimando a pele enrugada do frio da noite passada. O calor fervia o sangue ressequido, as várias faces da fome se desenhavam diante de mim.
            Vários pés manchados da lama fétida, que inunda as redondezas de minha casa, aproximaram-se de mim e de meus porcos. Eu senti aqueles pés pesados invadirem meu quintal. Já estava próximo do que era meu para defender o que me restava de sustento. O meu facão era afiado, todavia eram muitos os que vinham me roubar; e a sua fome era maior do que sua vontade. Ainda cortei alguns braços, cabeças e mãos.
            - Ó fome desolada dos bons homens. Tu transformas em assassino a mais bondosa das almas. Perversa, entristece a companhia amiga de quem recolhe amor ao sonho de anjos.
            Mas eram muitos. E quando conseguiram me abater nas costas deitaram meu corpo e espancaram-no com o que lhe dava a terra, e alcançavam as mãos. O golpe certeiro arrancou uma perna minha; as outras também a arrancaram sem piedade. E para pôr fim a minha tentativa de defesa:
            - Agora arrancarei tuas mãos, infame desgraçado. E assim, saberás o que é tentar tirar pão e carne de quem tem fome.
            Esta voz desesperada atravessou os meus ouvidos e a faca arrancou as minhas mãos. Só então percebi que eles lutavam pela vida, assim como eu. E se foram levando o meu sustento esfaqueado e comido quase cru. E cá eu fico derramando as minhas últimas gotas de vida, digo sangue. 










Amauri Morais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário