segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Diário de um brasileiro (des) marginalizando






Um ano depois...

            Eu até que estou feliz e tudo. Minha vida é ruim mesmo, basta eu passar três dias sem levar chuva no lombo ou ovos na cara que já fico feliz, muito feliz. Também não levei nenhuma reclamação do meu chefe nestes três dias. Estou me sentido o máximo, fora de brincadeira. Eu estou me sentido como qualquer idiota desses que aparece na televisão por alguns segundos e se acham a ultima bolacha do pacote e tudo. Fora de brincadeira.  
            Eu antes tinha falado que não gosto muito de política, mas eu acho que mudei de opinião mesmo, no duro. Quer dizer, não sei bem se mudei totalmente, mas eu mudei alguma coisa sim. Um amigo nosso aqui da comunidade resolveu se candidatar a vereador desta droga de cidade sabe? Aí eu resolvi que ia votar nele e tudo. Ele até me deu um guarda-chuva. Eu disse a ele que levava uma chuva de vez em quando e ele no outro dia me apareceu com esse guarda-chuva. Pensei em contar a ele dos ovos, mas achei difícil ele encontrar alguma coisa para empatar deu levar as ovadas na cara. Fiquei calado, foi bem melhor.
            Eu mudei muito de opinião quanto à política, no duro. Não que tenha mudado de opinião quanto aos deputados e senadores, são os mesmos filhos da puta de sempre, mas eu acho que nós podemos mudar. Se realmente colocarmos pessoas que nos valham lá, no palácio, ou onde seja que eles fiquem, acho que podemos mudar. Afinal de contas, quem escolhe eles é a gente mesmo, não é mesmo? Sabe, eu nunca tinha pensado nisto. Mas depois de algum tempo me veio esta ideia. Acho que não é de toda ruim.
            Como eu ia dizendo, o João, o nosso amigo daqui que vai se candidatar a vereador, ele nos chamou para um comício e tudo. Não sei se sou bem amigo, amigo dele, mas ele me deu o guarda-chuva e... Bem isso não importa, o que importa é que ele chamou a gente para o comício. Foi a maior zueira e tudo. Até que foi divertido vê aquele bando de idiotas gritando o nome de outro idiota que a maioria nem sabia quem é. Eu cansei minhas pernas, nós andamos mais de dois quilômetros, eu tenho muito pouca resistência para longas caminhadas, acho que deve ser porque não ando muito, ou é a comida que é pouca, ou sei lá. Eu me divertir pra caralho naquele dia. Era muito engraçado vê os caras gritando e tudo, e gritavam por uma dose de cachaça ou coisa do tipo. Era o máximo.
            Só que eu não gostei mesmo foi do que aconteceu quando nós voltamos do comício. Voltávamos do comício quando uma invasão dos homens de preto da policia acontecia na nossa favela. A droga daquela policia quando entra lá no morro é só pra matar gente. E foi isso que aconteceu com o meu amigo Fred Bossa New. Ele foi atingido por uma droga de uma bala perdida, a merda da bala acertou mesmo na cabeça dele. Os traficantes reagiram à invasão e começou o tiroteio do caralho. Eu tive tempo de chegar em meu barraco e vê todo mundo abaixado e, também me abaixei assim que consegui chegar e tudo, mas o tadinho do Fred foi pego assim que colocou os pés lá no morro. Desta vez quem morreu foi o meu vizinho. Sempre morrem inocentes quando aqueles filhos da puta sobem até aqui.
            Eu falei da morte do Fred Bossa New para o João e ele me disse que se eleito ia cuidar em fazer algum projeto para vê se tirava a gente daquele morro. Algo como uma vila de casas populares pra gente e tudo. Eu gostei da ideia. Uniria o útil ao agradável, além de evitar o tráfico por algum tempo também ia nos impedir de ir morar em baixo daquela ponte que eu gosto tanto. Eu disse acabar por um tempo o tráfico de drogas porque eu sei que o tráfico, no Brasil, não acaba assim tão fácil. Primeiro que quem manda mesmo é os bichões grandões lá do congresso. Eles achariam um jeito de implantar as drogas na nossa comunidade outra vez. Sempre acham. Agora eu tratei de ser cabo eleitoral número um do João. Ele tinha muitas outras ideias muito boas e tudo. Seria o máximo se ele fosse eleito.
E, enquanto isso, continuava a putaria com a nossa cara. Desta vez eles montaram a porra duma ONG aqui na comunidade. Para quem não sabe o que é a merda de uma ONG eu vou dizer o que é. Uma ONG é uma merda de um lugar aonde as crianças vão lá brincar, ler, comer alguma coisa e tudo. Mas acontece que lá nem sempre tem livro, ou comida, ou bola, ou qualquer outra porcaria que o valha para as crianças brincarem. Dizem que existem algumas OGN que funcionam mesmo, no duro, mas esta daqui da nossa comunidade só serve para recolherem dinheiro de doações para eles próprios. Pois é, abriram a ONG já está bem com dois meses. E não mudaram merda nenhuma aqui na favela. Tem uma menininha que trabalha na ONG, ela é daqui. Estão pagando um salário a ela e tudo. Acho que isto foi a única coisa que fizeram de bom aqui.
Amanhã é a eleição e o João tem uma grande chance de se eleger. Ele teve que receber ajuda dos caras lá do centro. Ele explicou pra gente e tudo. Explicou que sem o dinheiro deles não teria como se eleger, nem nada. É claro que nós entendemos, afinal de contas, nós precisamos de uma pessoa nossa lá na Câmara. Por falar em centro, a cada dia que vou lá fico com mais raiva e revolta dos filhos da puta do prefeito e governador desta merda de cidade e estado. Vocês podem achar que é marcação e tudo, mas não é. Toda vez que vou na porra daquele centro eu fico tropeçando e caindo nas bostas daqueles buracos da calçada. Não preciso nem falar dos caralhos dos buracos no meio da avenida. Mas até que eu acho bom aquele buraco no meio da avenida, só assim aqueles filhinhos de papai filhos da puta que jogam ovos na gente se fodem juntos com seus carrinhos. Tenho um prazer imenso quando vejo um filhinho de papai filho da mãe com o pneu do carro furado parado num canto da rodovia, ou com outro defeito no carro, no duro.
O João foi eleito. Vocês precisavam ver no dia das eleições. O bando de gente jogando ele pra cima e tudo, depois que saiu a apuração disseram que ele tinha sido eleito e tudo. Eu fiquei feliz pra burro quando soube que ele foi eleito. Ele fez uma festona daquelas. Eu comi até um pedaço de carne bem grande, que nem parecia com aqueles pedaços de osso que eu como, e tomei um copo inteiro de cerveja e tudo. Foi muito boa aquela noite, eu enchi a barriga mesmo naquela noite, no duro.
Depois de uns dois meses que o João tava lá na Câmara eu fui falar com ele. O João não tinha feito nada do que ele tinha dito. Ele me veio com uma conversa bonita que todos os outros políticos usam me dando desculpas e tudo. Dizendo que aqueles projetos levavam tempo, que a gente precisava ter calma. Aquilo tudo me irritou profundamente. Eu sei que leva um tempo pra as mudanças acontecer, mas será que eles não vêem que nós precisamos de mudanças pra agora? Que tem gente morrendo de tiro, de fome, de verme, de dengue e tudo?
Eu me despedi do João com a certeza de que ele não ia fazer nada por nós. Ele tinha se tornado um deles, até a conversa tava a mesma deles e tudo. Puta que o pariu, aquele filho da mãe tinha enganado a gente direitinho. Uns três meses depois eu mandei meu filho ir na Câmara algumas vezes. Ele foi umas três semanas. Estes sacanas além de trabalhar uma vez por semana ganham cem vezes mais que nós. Meu filho disse que o João não falou em nenhum projeto, nem nada, nas vezes que ele foi lá. O João só agradecia a gente grande e lamentava mortes no morro e agradecia a gente grande e dizia de problemas no morro e agradecia a gente grande. Mas não fazia porcaria de ação nenhuma. Mas eu acho que nas próximas eleições ele vai aparecer aqui pedindo voto.           
Foi aí que eu comecei a ver que se a gente quer que mude alguma coisa aqui na comunidade a gente mesmo tem que ir atrás e lutar e tudo. Porque hoje quase ninguém mais merece confiança, nem nada. Eu mesmo, a partir de agora, é quem vou trás dos interesses nossos aqui da comunidade. Eu vou lutar por todo mundo daqui. Meu nome agora não vai ser mais só José, e sim José Batalha!










Amauri Morais.

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